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VIAGEMCRÔNICA

a gente nunca para de viajar

o melhor lugar do mundo é
aqui e agora

Gilberto Gil

peru - costas vale sagrado.jpg

Crônicas sobre uma viagem que só termina no último suspiro.

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Qualquer plano de viagem está suspenso devido à pandemia. A regra é ficar em casa isolando-se socialmente e sem sair da cidade. É impossível saber quando se poderá viajar outra vez. As lembranças internas e externas são agora os únicos caminhos. Não há estradas, barcos, aeroportos, hotéis, placas de boas-vindas. Há o púrpuro gradativamente róseo alvorecer no reflexo de algum rio sem nós.


Conosco, os fetichistas mnemônicos, há vestígios de que passamos por uma passagem sem deixá-la no passado. Ilhados em casa rodeados por ondas poluídas com fotografias, mapas de metrô, ingressos de museus, xícaras, garrafas de vinho, chaveiros, panos de mesa, guardanapos, gravuras, aquarelas, algum plástico, uma pedra, uma planta, uma estrela do mar. Areia de praia, talvez.


Na parede do meu quarto preguei um mapa-múndi como quem abre uma janela à força. Ao redor colei fragmentos colhidos em viagens como quem orna o parapeito com jarros de gerânios regados diariamente pelos canais lacrimais, insistindo que haja vida depois da primavera, nem que seja uma memória no verão ou uma esperança nos invernos.


Percebo que há grudado no mapa o ingresso do show do Jorge Drexler em Medellín datado de 06 de abril de 2018. Eu começo a escrever esta crônica exatos 2 anos depois.


Em 2018 encontrei Drexler no avião que ia de Cartagena das Índias a Medellín. Não a pessoa, mas uma foto dele na revista do avião informando que ele se apresentaria na cidade com a turnê do álbum Salvavidas de Hielo. Mas a sensação da excitação veio como se tivesse visto a própria pessoa, tão surpreso da possibilidade não planejada de estar em mais um show dele. E no Teatro Metropolitano, lindíssimo, moderno e muito bem estruturado, como muitas instituições de cultura e ensino na Colômbia. Visivelmente contente e dizendo estar muito satisfeito de voltar à Medellín, cantava sobre estar no mundo, mais do que ser. Ao fim, deitou de braços abertos no palco como alguém que depois de seguir a luz do farol que girava no canto do palco enquanto cantava yo buscaba el rumbo de regreso sin quererlo encontrar, chegasse enfim ao seu destino sabendo que a coragem de caminhar aflui no prazer de encontrar seu lugar. Um de seus lugares, seja onde estiver. Foi o segundo show do Drexler que vi, e como o primeiro também foi numa viagem espero que mantenhamos telepaticamente nossa tradição.


Quando fui à Santiago no outono de 2014 saí do Brasil sabendo que haveria a estreia da turnê Bailar en la Cueva no Chile no Teatro Caupolican. Drexler - uruguaio que escolheu morar na Espanha mas parece ter o mundo na voz - cantou suas músicas do álbum que evocava alegria, fazendo descer um enorme globo espelhado em meio ao palco e convidava todos os trogloditas presentes a bailar. E no globo ele espelhou o mundo quando cantou. O uruguaio fazia questão de mostrar sua alegria por estar em Santiago, convidou vários músicos locais para cantar junto e bramiu um Me Gustan los Estudiantes em apoio aos universitários que protestavam por um sistema de ensino menos predatório naquela tarde.


Desde que o vi pela primeira vez na televisão, durante sua participação nos Oscars de 2005, a figura que Drexler me inspirou foi de um resistente caminhando pelo mundo sabendo e fazendo saber o que ele é, um latino-americano com voz. Impedido pelo cerimonial de cantar sua música nos números musicais da premiação ele fez um artístico ato político no palco quando recebeu do Prince a estatueta de melhor canção. Seu discurso não foi uma lista de agradecimentos, mas finalmente cantar para todos um trecho da música vencedora que se chama Al Otro Lado del Río originalmente composta para o filme Diários de Motocicleta, sobre as viagens transformadoras do jovem Ernesto Guevara. E cantou,


Clavo mi remo en el agua

Llevo tu remo en el mío

Creo que he visto una luz al otro lado del río

El día le irá pudiendo poco a poco al frío

Creo que he visto una luz al otro lado del río




 

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Atualizado: 12 de jun. de 2020

"No me importa si el viento va al oeste o para atrás. Donde sea voy a ir".


Como raios de sol desapunhalando as nuvens cinzas da minha memória, sons e figuras surgem. Recordar imagens me é mais instantâneo, apesar do movimento dos momentos tudo me vem à memória como uma fotografia. Também mais fácil é lembrar do som, do sotaque, do tom da voz de dois amigos se cumprimentando, da música cantada na rua, a música da Marina Lima, da força de um sapato de flamenco sobre o tablado.


Seja me concentrando ou estimulado, paro e consigo ver e ouvir. Mas o olfato não tem asas que voam tão alto assim. O cheiro me é mais difícil, há esforço maior para lembrar. Talvez seja um um sentido menos estimulado e assim faz a recordação de odores ser menos frequente. Mas, diante de tantos sentidos e sentimentos, a Andaluzia tem cheiros que oxigenam minha memória que resiste a diários leitos de morte.


Aliás, Andaluzia continuamente me salva quando me empurram meus suspiros finais. Mas me atenho aos olores, aqui.


Primeiramente o perfume de Nacho. Seria aquela escolha algo comum entre os andaluzes ou mais um estilo daquele senhor que usava enormes túnicas de linho em seu apartamento enquanto fumava muitos cigarros e ouvia música New Age intercaladas com Julio Iglesias e Marina Lima? Comunitário ou individual, seu perfume parecia provir da limeira avizinhando lima, poncã, clementina, chá de casca de laranja da minha avó.


Nacho era um historiador de formação que trabalhava num hospital da cidade. Nasceu em Salamanca mas aos 50 anos elegeu Sevilha (“nem pequena nem grande”) para viver. Eu pude sentir aquele perfume em duas ocasiões precisas. Uma quando me saudou durante minha chegada quando saí da estação de trem Santa Justa no entardecer fulvo de Sevilha e fui até seu apartamento onde seria seu hóspede de Couchsurfing por alguns dias. O cheiro cítrico me chamou atenção pelo distanciamento que senti, afinal não seria o tipo de perfume que eu usaria por acreditar não ser dos que me capeariam bem. Mas combinava com Nacho e com a luz da tarde.


Na segunda vez o perfume me deu um abraço de aniversário quando completei 26 anos, 2 dias depois da minha chegada. Ali o cheiro se tornou definitivamente uma marca. Junto com suas inclinações esotéricas, conhecimento vasto sobre história e astronomia, sua predileção por tintos de verano, o perfume cítrico fazia parte dos 365 arcos de ferradura que sustentavam o que o Nacho era.


De Sevilha a Córdoba dentro de um trem de alta velocidade, dentro de 45 minutos, dentro da excitação de saber o que me espera, porém sem a noção da sua intensidade. E chego às muralhas da cidade em missão de paz para poder entrar como um convidado, nunca um inimigo. Um convidado para sentar-se à mesa do banquete de rochas cansadas de mãos visigodas, cristãs, muçulmanas, mais cristãs e das minhas, atéias, brasileiras e apaixonadas.


Um banquete que se estende dia a dentro servindo amarelos infinitos. A cor da cidade que é o um músico flamenco concentrado com respeito ao lado da estátua do rabino Maimônides e flutuando sua música para que as douradas espanholas de Julio Romero não parem de dançar nunca nos quadros do seu museu. Amarelos na placa aludindo ao potro de Cervantes; na porta chamada Almodóvar; nas laranjas do Pátio de los Naranjos da amarelíssima Mesquita-Catedral.


Loura parede que sustenta uma imagem da Virgem que olha afetuosamente o cachorro caramelo que dorme à sombra do pátio fugindo da cúrcuma luz do sol. A Taberna Sociedad Plateros servindo um tremendo salmorejo cordobés e flamenquín que vou levar o sabor comigo como uma mancha de açafrão. Até as ruínas das brancas colunas coríntias em Córdoba hão de ser amarelas, os turistas na Calle de las Flores são amarelos, o céu azul sobre a ponte romana é amarelo.


E o cheiro, claro. Cada passo dado é uma respiração tropeçando. O nariz não sabe onde pisa, vacila pelos caminhos curvos tocando com as pontas de todos os dedos o odor desconhecido e cada vez mais movediço. Ao desistir de andar vagarosamente na ponta dos pés como um assustado à meia-noite, tateia fundo todo o ar e enche os pulmões pegando toda luz daquele amarelo.


São casas de chá por todos os lados. E os cheiros davam as mãos e voavam pelas ruas. Mas não todas, somente as mais estreitas onde podiam ficar cada segundo adiante mais juntos e mais fortes. E aquele convidado sortudo que passasse pela rua sentiria a mistura de hibiscos com canela com pimenta com granada com pétalas com um arco-íris de chás. Branco, negro, verde, vermelho.


Lia mistura de chás que eram vendidas com nomes como Anochecer en Córdoba ou Sueños en la Mezquita. Mas que para mim, andando sozinho por aquelas ruas frias, mágicas e coloridas, elas tinham o nome de apenas Eu Aqui, de Eu em Córdoba.


A cidade inteira cabia dentro daquele perfume marcante e adocicado dos chás mesclados no ar. Desde às ciganas que tiram a mão da cintura para ler a sorte de um viajante afortunado até o frescor de um pátio andaluz jorrando água de sua fonte. Desde à siesta silenciosa onde só o sol se sobressai às mulheres nuas no seio do Guadalquivir afluindo das páginas da Carmen.


E eu parava palidamente no meio da viela e respirava fundo o aroma dos chás como se fosse o último suspiro de uma memória recém-nascida.





 

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"Una giornata al mare tanto per noi morire nelle ombre di un sogno"


Depois do trabalho - nos veríamos depois que ele saísse do trabalho. 12 km de terra até lá. 4 horas para as horas livres. Terra e tempo no meio do ar. De La Paloma à La Pedrera, pomba de pedra num bater de asas pesado contra o vento austral que está a seu favor. Finalmente pousados na areia começamos a plantar a árvore frutífera à beira do mar e ao limite do fim do sol no Uruguai. Cada palavra - velha na boca de um e novidade para o desconhecido - fazia seu papel de gota que rega a planta vagarosamente. Cada pergunta sobre o passado, 50 gotas. Sobre o futuro, 70. Sobre paixão, litros. Sob o céu cinzento, bordejando a água fria e afundando o pé na areia - mas só um pouco, mantendo-nos leves apesar do peso do desejo crescer como redemoinho - chegamos ao barco. Fixo como uma baleia de ferro encalhada, um barco cravado na praia que era sua. Só a metade visível, mostrava por cima da areia apenas uma parte de sua estrutura desenhada pelo tempo e pelo vento artista. Vento passageiro que chegava, tocava um pedaço do monumento e partia, vento viajante. Por fora se via apenas um pouco, como em nós. E por baixo de toda aquela areia macia de grãos cortantes? No fundo havia um beijo escondido. O mais profundo pois tinha ares de ventania do litoral, apesar de ser o primeiro. Ares de ser o que era. Um beijo ítalo-brasileiro numa praia do Uruguai ao lado de um barco naufragado sob uma tarde cadente, gris e fria. Uma fotografia.


E fugimos pois só quem é livre segue as estrelas até cair como uma delas. Valizas com seu chão de areia e casas esparsas e distantes umas das outras, cada casa uma ilha, nossa ilha de exílio onde seríamos heróis apenas por um dia. Descontrolávamos os passos no escuro bucólico, consternados abaixo das constelações, mais brancas que nossas escleras somente as estrelas. E cantamos nossas línguas. Paolo e Rita. Mas quem brilhava era o público. As estrelas piscavam aplaudindo os dois amadores. O que amam? Suas línguas? Unidas, também eram um estribilho. A Via Láctea viu aquele beijo gemido e seguiu girando. Pensando bem, quem girou foi a gente. Que é gente de verdade, não anjos, que ama de verdade sem nem saber de nada. Outra fotografia.


E despertamos desesperados com muito sol e pouco tempo. Sempre ele, o chefe, o dono, a bússola, os ponteiros da realidade. Há muito trabalho pela frente, o esperando. Mas agora há dunas para subir. Áridos caminhos árduos, como de costume. Quilômetros de areia cálida em altas dunas fulvas que terminam em imensas rochas escaláveis. Terminam, não. Essa é a metade de um caminho. Todavia, paramos aí na metade, não avançamos mais. Como meio barco naufragado. Já no topo das rochas a música dizia quem tem consciência para ter coragem. Provavelmente tínhamos isto pelas metades também. Tínhamos o pedaço da metade um do outro, como uma lua minguando. Sabíamos que em breve o breu abraçaria o já pouco desenho do outro, como a lua que não conseguimos ver na noite anterior. Uma fotografia, desta vez real - não apenas uma imagem onírica de um sonhador. Retrato analógico feito pelos dois viajantes, cada um na sua vez olhou pela lente e disparou em busca da luz. Uma sobreposição que une o separado numa surpresa futurística. Uma dupla fotografia de um tempo.


E o trabalho exigiu um adeus e um abraço partido. E a distância muito larga não regaria nossa árvore - colheita de fruto verde. Planta de casa de viajante morre seca de saudade. Adeus, eu tive tempo para os mil fins. Aquele pôr do sol fazia minha sombra crescer e avançar até o mar. Sentado sozinho na praia, o que era escuro alcançou a espuma branca do final das ondas. Eu seria capaz de me afogar mesmo gigante de tanta memória? De tanta liberdade me assombrei com tanto mar nos olhos. Havia por perto um posto de salva-vidas, vazio e ninguém. Encarei um pouco de fim de sol refletido no vermelho alerta da madeira. Luz insuficiente para secar o molhado. Mas é ainda assim um grão dourado de vida. E se é vida, dá para respirar. Uma fotografia:




 


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