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VIAGEMCRÔNICA

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Gilberto Gil

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Crônicas sobre uma viagem que só termina no último suspiro.

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Um cheiro de amarelo

Atualizado: 12 de jun. de 2020

"No me importa si el viento va al oeste o para atrás. Donde sea voy a ir".


Como raios de sol desapunhalando as nuvens cinzas da minha memória, sons e figuras surgem. Recordar imagens me é mais instantâneo, apesar do movimento dos momentos tudo me vem à memória como uma fotografia. Também mais fácil é lembrar do som, do sotaque, do tom da voz de dois amigos se cumprimentando, da música cantada na rua, a música da Marina Lima, da força de um sapato de flamenco sobre o tablado.


Seja me concentrando ou estimulado, paro e consigo ver e ouvir. Mas o olfato não tem asas que voam tão alto assim. O cheiro me é mais difícil, há esforço maior para lembrar. Talvez seja um um sentido menos estimulado e assim faz a recordação de odores ser menos frequente. Mas, diante de tantos sentidos e sentimentos, a Andaluzia tem cheiros que oxigenam minha memória que resiste a diários leitos de morte.


Aliás, Andaluzia continuamente me salva quando me empurram meus suspiros finais. Mas me atenho aos olores, aqui.


Primeiramente o perfume de Nacho. Seria aquela escolha algo comum entre os andaluzes ou mais um estilo daquele senhor que usava enormes túnicas de linho em seu apartamento enquanto fumava muitos cigarros e ouvia música New Age intercaladas com Julio Iglesias e Marina Lima? Comunitário ou individual, seu perfume parecia provir da limeira avizinhando lima, poncã, clementina, chá de casca de laranja da minha avó.


Nacho era um historiador de formação que trabalhava num hospital da cidade. Nasceu em Salamanca mas aos 50 anos elegeu Sevilha (“nem pequena nem grande”) para viver. Eu pude sentir aquele perfume em duas ocasiões precisas. Uma quando me saudou durante minha chegada quando saí da estação de trem Santa Justa no entardecer fulvo de Sevilha e fui até seu apartamento onde seria seu hóspede de Couchsurfing por alguns dias. O cheiro cítrico me chamou atenção pelo distanciamento que senti, afinal não seria o tipo de perfume que eu usaria por acreditar não ser dos que me capeariam bem. Mas combinava com Nacho e com a luz da tarde.


Na segunda vez o perfume me deu um abraço de aniversário quando completei 26 anos, 2 dias depois da minha chegada. Ali o cheiro se tornou definitivamente uma marca. Junto com suas inclinações esotéricas, conhecimento vasto sobre história e astronomia, sua predileção por tintos de verano, o perfume cítrico fazia parte dos 365 arcos de ferradura que sustentavam o que o Nacho era.


De Sevilha a Córdoba dentro de um trem de alta velocidade, dentro de 45 minutos, dentro da excitação de saber o que me espera, porém sem a noção da sua intensidade. E chego às muralhas da cidade em missão de paz para poder entrar como um convidado, nunca um inimigo. Um convidado para sentar-se à mesa do banquete de rochas cansadas de mãos visigodas, cristãs, muçulmanas, mais cristãs e das minhas, atéias, brasileiras e apaixonadas.


Um banquete que se estende dia a dentro servindo amarelos infinitos. A cor da cidade que é o um músico flamenco concentrado com respeito ao lado da estátua do rabino Maimônides e flutuando sua música para que as douradas espanholas de Julio Romero não parem de dançar nunca nos quadros do seu museu. Amarelos na placa aludindo ao potro de Cervantes; na porta chamada Almodóvar; nas laranjas do Pátio de los Naranjos da amarelíssima Mesquita-Catedral.


Loura parede que sustenta uma imagem da Virgem que olha afetuosamente o cachorro caramelo que dorme à sombra do pátio fugindo da cúrcuma luz do sol. A Taberna Sociedad Plateros servindo um tremendo salmorejo cordobés e flamenquín que vou levar o sabor comigo como uma mancha de açafrão. Até as ruínas das brancas colunas coríntias em Córdoba hão de ser amarelas, os turistas na Calle de las Flores são amarelos, o céu azul sobre a ponte romana é amarelo.


E o cheiro, claro. Cada passo dado é uma respiração tropeçando. O nariz não sabe onde pisa, vacila pelos caminhos curvos tocando com as pontas de todos os dedos o odor desconhecido e cada vez mais movediço. Ao desistir de andar vagarosamente na ponta dos pés como um assustado à meia-noite, tateia fundo todo o ar e enche os pulmões pegando toda luz daquele amarelo.


São casas de chá por todos os lados. E os cheiros davam as mãos e voavam pelas ruas. Mas não todas, somente as mais estreitas onde podiam ficar cada segundo adiante mais juntos e mais fortes. E aquele convidado sortudo que passasse pela rua sentiria a mistura de hibiscos com canela com pimenta com granada com pétalas com um arco-íris de chás. Branco, negro, verde, vermelho.


Lia mistura de chás que eram vendidas com nomes como Anochecer en Córdoba ou Sueños en la Mezquita. Mas que para mim, andando sozinho por aquelas ruas frias, mágicas e coloridas, elas tinham o nome de apenas Eu Aqui, de Eu em Córdoba.


A cidade inteira cabia dentro daquele perfume marcante e adocicado dos chás mesclados no ar. Desde às ciganas que tiram a mão da cintura para ler a sorte de um viajante afortunado até o frescor de um pátio andaluz jorrando água de sua fonte. Desde à siesta silenciosa onde só o sol se sobressai às mulheres nuas no seio do Guadalquivir afluindo das páginas da Carmen.


E eu parava palidamente no meio da viela e respirava fundo o aroma dos chás como se fosse o último suspiro de uma memória recém-nascida.





 

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